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Nelson Chaves condensou a trajetória do povo brasileiro

HORA DO POVO

Homem imprescindível na história brasileira, Nelson Chaves dos Santos faleceu na última segunda-feira na capital de São Paulo

Existem os homens providenciais.

Aqueles que, quando tudo parece sem saída, descobrem que o caminho só existe quando o construímos – e que somente é possível construí-lo através da luta. São os pontos luminosos da Humanidade, sem os quais a coletividade não poderia avançar e sempre, ao final e ao cabo, erguer-se diante da barbárie para a conquista da civilização. No entanto, eles não nasceram assim ou foram predestinados para esse papel. Pelo contrário, assim se tornaram porque escolheram o que queriam ser.

Nelson Chaves dos Santos era desta espécie de homens.

Ele poderia ter escolhido ficar na cidade onde nasceu, Paranaíba, hoje no Mato Grosso do Sul, e ser, talvez, um fazendeiro.

Ele poderia ter escolhido ficar longe da maioria dos homens e mulheres da sua terra, o Brasil, nas lutas do fim da década de 50 e começos da década de 60.

Ele poderia, quando o golpe de 64 impôs uma ditadura bárbara, tão estúpida quanto entreguista e antipopular, cuidar de alguns negócios particulares – e esperar melhores dias.

Ele poderia, quando sob tortura, trair a si mesmo e colaborar com a tirania – ou, depois de banido do país pela ditadura, ficar a salvo no exterior, percorrendo a margem esquerda (ou direita) do Sena, frequentando bistrôs e brasseries, até que a situação mudasse no Brasil.

No entanto, ele preferiu voltar, quando o banimento equivalia a uma ordem de assassinato em seu próprio país, e empreender a luta. Por isso, a situação mudou. Foram homens como Nelson, que amavam ao seu povo e ao seu país a ponto de enfrentarem a ditadura – e seus patrões de Washington – em condições dificílimas, tremendamente desiguais, que possibilitaram a mudança. Na convenção que aprovou a candidatura de Tancredo Neves para presidente da República, lá estava Nelson, no centro dos acontecimentos.

Havia nele algo de muito impressionante – e permito-me aqui rememorar a primeira vez em que o vi, numa lanchonete na Avenida Brasil, no Rio, ainda na clandestinidade, lá por 1975 ou 1976. Quando você tem 23 anos, alguém com oito anos a mais parece muito, muito mais velho. Mas ele não parecia, para minha surpresa, me achar muito mais novo. Lembro que eu estava acompanhando Jorge Venâncio – que até há algum tempo, diretor de redação do HP. O que mais me chamou a atenção – apenas um sentimento – era a coragem que ele demonstrava. Como eu sentia isso? Não sei, leitor, mas todos aqueles que conviveram com Nelson – exceto algumas pulgas, que sempre as há – podem fornecer testemunho semelhante. Não era nenhuma sensibilidade especial, ou mágica, da minha parte.

Todos nós sentíamos a conjunção de grandeza e bondade (é mais exata esta palavra do que a sua aparentada, mas não idêntica, generosidade) que constituía a personalidade de Nelson. Nele, a barbárie fora derrotada completamente: saíra inteiro e sem ressentimentos. Mas com a inamovível decisão de fazer com que a Humanidade, na sua expressão, varra o lixo da superfície da Terra. A isso ele se dedicaria de forma, inclusive, mais firme do que antes.

Nelson nasceu no fim da II Guerra, em 27 de abril de 1945. Iniciou sua vida política ainda antes de 1964, nas organizações juvenis da Igreja, quando morava e estudava em Araçatuba. Mudando-se para São Paulo, foi, em seguida, membro da organização Política Operária (PO), mas o caráter intelectualista ou imobilista dessa organização o afastara: “eu queria lutar”, dizia ele, relembrando essa época. Foi, então, um dos pioneiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em cinco de fevereiro de 1969, foi preso em Mato Grosso – na fazenda Ariranha, onde nascera, em Paranaíba (hoje, Mato Grosso do Sul).

Torturado barbaramente, ele conseguia ter humor até quando lembrava desses momentos extremamente difíceis: “o duro é aguentar quando eles não deixam você dormir. Aí é fogo”.

Em janeiro de 1971, Nelson foi um dos presos políticos trocados pelo embaixador suíço – a ditadura decretou seu banimento do território nacional, assim como de todos os presos políticos que foram libertados e abrigados pelo Chile de Salvador Allende.

Nelson contribuiu com as inciativas populares do governo Allende até o golpe de 11 de setembro de 1973. Com a perseguição homicida aos patriotas e democratas, desencadeada pela CIA e a ditadura pró-americana de Pinochet, Nelson, acompanhado por seu grande amigo Eduardo Fernandes – depois editor internacional da Hora do Povo – atravessou a fronteira com a Argentina e alcançou a Europa.

Foi algum tempo depois que tomou aquela que considerava uma das mais difíceis decisões da sua vida. Já integrado ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro desde o Chile, discutia-se, em Paris, a necessária volta ao Brasil, onde a organização – que, desde o final de 1972, iniciara um novo período tático-estratégico, tendo a luta popular pelas liberdades democráticas por centro – necessitava urgentemente de quadros para que pudesse implementar plenamente sua nova linha política.

Naquele momento, muitos vacilavam em voltar. Os perigos eram muitos – e até mesmo as dificuldades de instalar-se no Brasil. Nelson jamais esqueceu como ficou surpreendido ao notar que quadros que considerava melhores que ele refugavam a volta ao país. “Aí eu me apresentei para voltar. Meu motivo é que alguém tinha de voltar. Eu tinha medo, mas o que eu ia fazer? Tinha de voltar”.

E ele voltou. Na clandestinidade, se tornou um dos mais ativos dirigentes políticos do país. Lembro-me de Nelson andando entre a avenida Antonio Carlos e a Cinelândia, no Rio, sendo reconhecido (cada um desses reconhecimentos sob um nome diferente…) por gente do teatro, alguns professores universitários e escritores. O difícil era não rir (e, também, não sentir um certo receio) quando um falava com “Ricardo”, o próximo com “Jofre”, e assim por diante, para referir-se ao mesmo Nelson (que eu também não sabia o nome até a anistia).

Porém, estaria enganado quem fizesse a suposição de que Nelson não se preocupava com a próproia segurança – ou com a segurança da sua organização. As suas atividades eram as necessárias para desenvolver o trabalho político.

Em março de 1979, Nelson foi preso outra vez. A pronta mobilização do movimento popular garantiu sua vida e integridade física. Estávamos próximos da anistia. Nelson foi o primeiro preso político a ser libertado no país. A história, registrada pelos jornais da época, é característica: o juiz-auditor (na verdade, o juiz-auditor substituto) não queria libertá-lo, apesar do próprio presidente da época, João Batista Figueiredo, ter decretado a extinção da punibilidade daqueles que não tinham sido sentenciados até a data da lei de anistia. Nelson protestou. O juiz resolveu soltá-lo com a condição de que respondesse o processo em casa. Nelson não aceitou, pois era uma evidente ilegalidade. O juiz-auditor, algo histérico, mandou prendê-lo por desacato à autoridade. Mas recebeu a seguinte resposta do capitão da PM, que acompanhava Nelson: “Mas ele já está preso, meritíssimo”. Diante disso, o juiz desistiu e Nelson foi o primeiro preso político a sair livre, no dia 30 de agosto de 1979.

Nelson dedicou-se, então, no MR8, a construir a frente nacional e popular necessária às transformações do país e às relações com os partidos progressistas de todo o mundo. Com a fundação do Partido Pátria Livre, foi eleito seu secretário de relações internacionais.

Nelson Chaves foi um entusiasta e colaborador da HORA DO POVO desde o seu primeiro número, em 1979.

A um grande homem que nunca faltou ao seu povo, que marcou a História do Brasil, a nossa homenagem, gratidão e, para sempre, ficará dentro de cada um o prazer da convivência com um brasileiro que nunca se abateu diante de qualquer vicissitude.

Nelson era um heroi. De poucas pessoas se pode falar desse jeito sem exageros. Ele era uma delas.

Nossa solidariedade à sua esposa, Eliane, ao seu filho, Camilo, e às suas filhas, Anna Carolina e Anna Paula.

CARLOS LOPES

1 comments on “Nelson Chaves condensou a trajetória do povo brasileiro

  1. Pelas poucas horas que convivi com ele no PPL em nov/dez senti uma afinidade imensa pelo que representava. Confesso que foi ele que me moveu a falar como falei no Congresso com minha bandeira.

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